Na área de Saúde, o Brasil dispõe de um arcabouço legal avançado. Em seu artigo 196, a Constituição Federal estabelece que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença. As políticas de saúde devem estar integradas às políticas sociais e econômicas”. O inciso II do Artigo 198 determina o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
A lei 8080/1990 – A Lei Orgânica da Saúde – em seu Artigo 3º afirma que “Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”. Não obstante a existência de um arcabouço legal avançado, pratica-se, no país, uma precária gestão de doenças, em que os preceitos constitucionais não são considerados, e a prevenção, praticamente inexiste.
A maioria dos brasileiros não tem uma adequada compreensão sobre saúde, embora ela constitua requisito essencial para a qualidade de vida da população e para a prosperidade econômica do país. Nessa perspectiva, todas as políticas públicas devem contribuir para a melhoria da saúde coletiva, com atenção especial à saúde dos trabalhadores, por serem a parcela da população que produz para o atendimento de suas necessidades e para o atendimento das necessidades das crianças, dos idosos e dos incapacitados.
Em virtude da falta de informação, é comum a observação de pessoas em situação de risco nas suas casas, no trabalho, nas vias públicas, no lazer e nos transportes. Isto constitui em uma verdadeira “fábrica de acidentes e doenças”, que produz muitas mortes, incapacidades permanentes, incapacidades temporárias e doenças em estágios iniciais, que irão se agravar, caso as condições de vida e trabalho não sejam melhoradas. Este cenário representa, também, uma ameaça à Previdência Social.
Por outro lado, como consequência da Cultura de Doença prevalente no país, pode-se observar, em praticamente todas as iniciativas na área de Saúde, uma abordagem fragmentada, desprovida de uma compreensão de sua complexidade e de uma politica que oriente o estabelecimento de objetivos e estratégias. Este artigo foi elaborado na perspectiva de contribuir para o desenvolvimento de uma Cultura de Saúde no país.
Os estudos modernos permitem afirmar que a saúde é uma resultante complexa da interação de fatores culturais, políticos, econômicos, educacionais, sociais, ambientais e pessoais. Essa interação inicia-se na concepção e mantém-se ao longo da vida, durante a gestação, o parto, a infância, a puberdade, a maturidade e a velhice, conforme mostra a Figura 1, a seguir.
Fatores Culturais
Para exemplificar a influência dos fatores culturais na saúde, pode ser citado o estudo do Dr. Leonard Sumé, epidemiologista da Escola de Saúde Pública da Universidade da Califórnia, em imigrantes japoneses nos EUA. É sabido que no Japão há uma alta expectativa de vida e baixos índices de doenças cardíacas, apesar da forte industrialização, altos níveis de poluição e ritmo de vida acelerado. O estudo foi proposto para avaliar as influências da proteção genética ou da dieta na saúde.
O estudo mostrou que, após uma geração, os imigrantes que adotaram uma dieta tipicamente ocidental, rica em gorduras, tornaram-se tão vulneráveis às doenças cardíacas quanto os americanos – exceto aqueles que mantiveram estreita ligação com os valores japoneses, com sua comunidade e continuaram a usar o próprio idioma. Os japoneses têm uma crença que chamam de amae e, segundo ela, o bem-estar de uma pessoa depende da colaboração e da boa vontade de seu grupo. Desse modo, ser parte de um grupo e compartilhar valores protege a saúde. Nenhuma outra variável como idade, sexo, classe social ou hábito explicou esse efeito. Como conclusão, pode-se afirmar que os fatores culturais mostraram maior influência na saúde dos japoneses que os fatores genéticos e alimentares.
Fatores Políticos
A política “Juntos pela Saúde” (Together for Health), adotada pela União Europeia (UE) como base da gestão de saúde na região, no período 2008-2013, teve como justificativa a convicção de que saúde é um atributo central na vida das pessoas e deve ser assegurada por políticas e ações intersetoriais nos estados membros. O Princípio 3 da política Juntos pela Saúde tem a seguinte redação: “Saúde em Todas as Políticas” (Health In All Policies). A razão para a adoção deste princípio é que todas as Políticas Públicas, tais como a Política Industrial, a Política Ambiental, a Política de Imigração, a Política de Regulamentação, a Política de Proteção Radiológica podem impactar a saúde da população, com reflexos nos seus indicadores.
Os dirigentes europeus entendem a importância do estabelecimento de sinergias entre os diversos setores para fortalecer a Política de Saúde, que deve ser apoiada pela indústria, universidade, mídia, ONGs e outros segmentos das sociedades europeias. Deriva deste princípio a integração de assuntos de saúde em todas as políticas dos países. Observa-se grande semelhança com o texto do artigo 196 da CF, supracitado.
Fatores Econômicos
O Princípio 2 da política “Juntos pela Saúde” focaliza a relação entre Saúde e Economia e estabelece que a saúde da população é a maior riqueza de um país e que uma população saudável constitui pré-requisito para a produtividade econômica, a prosperidade e o bem-estar coletivo. Os estudos mostram que a renda influencia a saúde em virtude de condicionar as condições de vida e trabalho. Boas condições de vida e trabalho contribuem para a saúde, enquanto as condições de vida e trabalho precárias contribuem para a doença.
Estudos realizados no Canadá mostraram, de maneira clara, a associação entre diabetes e nível de renda: quanto mais baixa a renda, maior a prevalência de diabetes entre os canadenses. As políticas econômicas têm uma forte influência na saúde da população, sendo que as crises econômicas aumentam a incidência de doenças em geral.
Fatores Educacionais
A política “Juntos pela Saúde” da União Europeia recomenda o desenvolvimento das competências pessoais necessárias à proteção da própria saúde, com base no conceito de alfabetização em saúde, que significa o desenvolvimento de habilidades para ler, selecionar e compreender as informações de saúde, para se estar apto a fazer julgamentos fundamentados em prol de sua saúde, nas diferentes situações da vida. Sem dúvida, a alfabetização em saúde deve ser fundamentada na plena compreensão da saúde em toda a sua complexidade, razão de ser deste artigo.
Um consistente estudo abrangendo 138 países, desenvolvido no período 1860-1985, mostrou uma indiscutível associação entre a elevação dos níveis educacionais com o aumento da expectativa de vida da população. Desse modo, em função da forte relação entre Saúde e Educação, há um consenso de que todos os programas, projetos e campanhas de saúde devem ter um componente educacional. Os processos educacionais devem contribuir para a alfabetização em saúde de toda a população e enfatizar que cada pessoa deve compreender que tem uma parcela de responsabilidade por sua saúde, que é intransferível.
Sendo a saúde uma resultante complexa, como propõe o artigo, ela não pode ser assegurada apenas pela prescrição de medicamentos e a realização de procedimentos cirúrgicos, como praticado no país. Todos devem buscar informações para melhor cuidar de sua saúde nas suas casas, nos locais de trabalho e demais ambientes de permanência, considerando a possibilidade da interação do seu organismo com agentes físicos, químicos, biológicos, ergonômicos e psicossociais em todos esses ambientes.
Deve ser aqui assinalado que o aumento da renda só contribui para a melhoria dos níveis de saúde quando associado a um projeto educativo consistente. Caso contrário, contribuirá para o aumento do consumo, muitas vezes nocivo para a saúde.
Fatores Sociais
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como o estado de perfeito equilíbrio físico, mental e social, reconhecendo a importância da influência dos fatores sociais na saúde desde 1946. Além disso, a OMS trabalha com o conceito “Determinantes Sociais de Saúde” e estuda suas relações com as condições de vida e trabalho que impactam nos níveis de saúde da população.
Uma contribuição importante foi obtida no projeto “Estudo do Desenvolvimento Adulto”, empreendido pela Universidade de Harvard, que apresenta a inédita duração de 75 anos, acompanhando 224 jovens do sexo masculino, subdivididos em 2 grupos: alunos de Harvard e jovens de famílias pobres de Boston. Todos foram acompanhados por meio de entrevistas e exames médicos a cada 2 anos. O estudo está sendo conduzido pelo quarto diretor e mostrou, como principal conclusão, que os bons relacionamentos dos participantes com familiares, amigos e comunidade foram os maiores responsáveis por mantê-los mais felizes e saudáveis.
Foram extraídas algumas lições sobre os relacionamentos: as conexões sociais são boas; a solidão é prejudicial para a saúde e para a memória; viver em meio a conflitos é ruim para a saúde, aos 50 anos o nível de satisfação com os relacionamentos mostrou-se mais importante que o nível de colesterol para prever o envelhecimento; e as pessoas mais satisfeitas com seus relacionamentos aos 50 anos mostraram-se as mais saudáveis aos 80 anos. Em resumo, o estudo mostrou que uma vida feliz e saudável se constrói com boas relações sociais.
Fatores Ambientais
Os ambientes de permanência das pessoas abrangem, na atualidade: moradia trabalho, estudo, lazer e transporte, possibilitando a mobilidade necessária. Em todos esses ambientes, pode ocorrer exposição a agentes físicos, químicos, biológicos, ergonômicos e psicossociais, descritos na Tabela 1.
Fatores Pessoais
Abrangem os fatores genéticos, os fatores emocionais e os hábitos. Os fatores genéticos herdados dos pais podem determinar certas doenças ou predisposição a elas nos descendentes. Segundo estudos recentes da Genética, os genes podem ser ligados e desligados de acordo com os hábitos, o ambiente e o estresse. Isso significa que hábitos e ambientes saudáveis podem evitar a manifestação de doenças relacionadas aos fatores genéticos.
Os fatores emocionais vêm ganhando importância crescente como determinantes da saúde em consequência dos resultados de pesquisas recentes. Durante décadas, os neurocientistas admitiram que o cérebro adulto fosse uma estrutura estável, com forma e função basicamente fixas. Novos estudos evidenciaram uma estrutura dinâmica e passível de mudanças. Esta propriedade do cérebro, que é preservada por toda a vida, foi chamada neuroplasticidade e consiste na capacidade de modificar sua estrutura e sua função em resposta às experiências e aos pensamentos.
Constituem exemplos de neuroplasticidade o cérebro do violinista, que apresenta um aumento mensurável de tamanho e atividade nas áreas que controlam os movimentos dos dedos, e o cérebro dos taxistas de Londres, que aprendem a dirigir numa trama de ruas altamente complicada, que mostra um crescimento do hipocampo, região associada ao contexto é à memória espacial.
Durante décadas, as pesquisas focalizaram os efeitos das emoções negativas como a raiva, o ressentimento, a hostilidade, a depressão, o medo e a ansiedade sobre a saúde e obtiveram evidências do enfraquecimento do sistema imunológico e aumento do risco de doenças cardíacas e outras doenças. Por outro lado, uma das descobertas mais consistentes na atualidade é a relação entre emoções positivas, como a felicidade, a alegria, o contentamento, o ânimo, a empolgação e o entusiasmo, com a saúde.
Segundo o Professor Richard J. Davidson, PhD em Psicologia pela Universidade de Harvard, as pesquisas com pessoas que praticam a meditação demonstram que o treinamento mental pode alterar os padrões de atividade e a própria estrutura do cérebro e fortalecer a empatia, a compaixão, o otimismo e a sensação de bem-estar, possibilitando uma vida melhor.
A meditação, atualmente estudada por renomadas universidades europeias e americanas, tem mostrado efeitos positivos na produtividade, na melhora da memória dos idosos, no tratamento de doenças como a psoríase e o transtorno obsessivo-compulsivo, na diminuição da compulsão alimentar na obesidade e outros distúrbios.
Os hábitos saudáveis reforçam a saúde e, por outro lado, os hábitos nocivos a corroem. Em seu livro “O Poder do Hábito”, Charles Duhigg, repórter investigativo do New York Times, afirma que nas últimas duas décadas, neurologistas, psicólogos e sociólogos finalmente começaram a entender como os hábitos funcionam e, mais importante, como podem ser transformados, uma vez que, ao longo do tempo, eles têm um enorme impacto na saúde, na produtividade, na estabilidade financeira e na felicidade das pessoas.
O livro relata a história de uma jovem fumante, que bebia excessivamente, lutava contra a obesidade, tinha uma vida financeira desorganizada e não parava nos empregos. Ao decidir parar de fumar, adotou a prática regular de atividade física e, além de parar de fumar, parou de beber, perdeu 27 quilos, passou a participar de maratonas, iniciou um mestrado e comprou uma casa. Duhigg assinala que alguns hábitos são mais importantes que outros na reformulação de vidas e de empresas.
Estes são os hábitos angulares, capazes de influenciar o modo como as pessoas trabalham, comem, se divertem, gastam, se comunicam e vivem. Os hábitos angulares dão início a um processo que, ao longo do tempo, transforma tudo.
Como conclusão, o autor assinala a importância desta compreensão abrangente da saúde como contribuição para o desenvolvimento e a consolidação de uma Cultura de Saúde no país, alicerçada na prevenção, que possibilite melhores condições de vida para os brasileiros.