Marco para a segurança química
Especialista comenta evolução e impactos do GHS para trabalhadores e empresas
Fonte: Revista Proteção Setembro/2015– Entrevista Fabriciano Pinheiro
Por: Priscilla Nery
Mesmo após quatro anos da adoção do GHS (Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos) pelo Brasil, ainda são grandes os desafios para adequações ao Sistema, começando pelo desconhecimento de profissionais e empresas a respeito da segurança química. Com o fim do prazo estabelecido pelo país para alinhamento da classificação e ficha de segurança de misturas à legislação em 1º de junho (para rotulagem o prazo será até 30/11/2015), o assunto voltou à cena com força total – afinal, o tema afeta qualquer indústria atual, pois todas utilizam químicos, seja em processos de manipulação ou na comercialização.
Este é o cenário desta entrevista, concedida pelo mestre em Toxicologia, especialista em gerenciamento de risco toxicológico e segurança química, Fabriciano Pinheiro. Iniciando pela origem do GHS, ele fala sobre as etapas para implementação do sistema, impactos, legislação do setor e o importante papel dos prevencionistas para a proteção dos trabalhadores que lidam com produtos químicos. Fabriciano também foi diretor da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) e representou o Brasil no Subcomitê de Especialistas das Nações Unidas sobre o Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos em 2014. Atualmente, é diretor técnico da Intertox; coordenador da Comissão de Estudos “Informações sobre Segurança, Saúde e Meio Ambiente relacionados a Produtos Químicos” (CE-10:101.05) do Comitê Brasileiro de Química (ABNT/ CB-10) e coordena o curso de pós-graduação em Ciências Toxicológicas das Faculdades Oswaldo Cruz/SP.
Qual a importância da segurança química no ambiente de trabalho?
Segurança química é uma ciência que busca prevenir qualquer efeito adverso para o ser humano ou meio ambiente, decorrente de contato com produto químico. Isso pode ocorrer durante a produção, armazenagem, transporte ou descarte. Em qualquer etapa do chamado ciclo de vida do produto químico em que possa ocorrer contato de um trabalhador com esse item, a segurança química deverá ser aplicada para prevenir possíveis efeitos adversos. Para tanto, esta ciência apresenta inúmeras metodologias e ferramentas. Primeiro, é preciso saber se o químico é perigoso ou não, qual sua capacidade de causar dano, fazendo-se necessário o uso de sistemas de classificação de perigos. Cientes disso, passamos a usar ferramentas para controlar a exposição, evitando que os danos aconteçam. Toda e qualquer indústria hoje, seja uma petroquímica ou de medicamentos, tem muitos produtos químicos. Então, a segurança química está no dia a dia de qualquer indústria, não sendo só aplicada à indústria química. Tenho, por exemplo, contato com automobilísticas que fabricam peças como airbags e cintos de segurança. Para fazerem isso, os funcionários têm contato com diversos produtos químicos. As ferramentas da segurança química servem para prevenir os efeitos adversos que estes produtos podem causar durante sua manipulação. Obviamente, o trabalhador é o principal personagem em contato com esses químicos, porque tem um envolvimento maior, está sujeito a situações mais arriscadas e ao contato com os produtos. Uma das primeiras legislações importantes que enfocou o assunto foi a Convenção 170 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1998, por meio do Decreto 2.657. Essa legislação fala sobre gestão de químicos com foco no trabalhador, e traz as diversas maneiras para aplicar uma gestão segura de químicos. Foi aí que figurou claramente a obrigatoriedade de se definir se o produto químico é perigoso ou não, de informar, por meio de rótulo e ficha de segurança, como identificar, manipular e armazenar, além da obrigação de treinar os trabalhadores que lidam com químicos. A Convenção também trouxe a obrigatoriedade de os empregadores disponibilizarem essas informações aos trabalhadores. Fala muito do direito de saber que o trabalhador tem, o direito de conhecer os perigos e os riscos químicos a que está exposto no ambiente de trabalho.
Dentro do campo da segurança química, o Brasil adotou, com a NR 26 e NBR 14725, o GHS (Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos). Como o GHS chegou ao Brasil?
Após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), realizada pela ONU no Rio de Janeiro/RJ, foi publicada a Agenda 21. Dentre vários assuntos deste documento – que possui 40 capítulos -, o capítulo 19 trouxe a preocupação sobre uma gestão segura e global de produtos químicos. Dentro dessa gestão havia alguns artigos que definiam que os países deveriam criar um sistema globalmente harmonizado para classificar e comunicar os perigos dos químicos. Essa classificação e comunicação viriam por meio de rótulos e fichas de segurança. Na época, 178 países participaram e assinaram a Agenda 21, se comprometendo a incorporar esse sistema. Ficou a cargo da ONU levar isso para frente. Desde então, formou-se um grupo para discutir a criação desse sistema, que continua se reunindo até hoje; é uma comissão de experts sobre GHS. Após 11 anos, a comissão publicou a primeira edição do manual sobre o GHS, que é conhecido como o Livro Púrpura, ou Purple Book. É este manual da ONU que discorre sobre o GHS e todos os seus detalhes. Ele foi publicado em 2003 e, a partir daí os países passaram a tê-lo como referência para cumprir o acordo da ECO 92. Cada país, de posse deste material, vem, gradativamente, incorporando o GHS à sua legislação. Não foram definidos prazos para que todos se adequassem. É por isso que vemos diferenças de prazo de adoção do GHS pelo mundo. No Brasil, a primeira incorporação ocorreu pela ABNT NBR 14725, que trouxe as informações de classificação, rotulagem e ficha de segurança (FISPQ) do sistema. Isso foi em 2009. Em 2011, o MTE oficializou que, para determinação de produto perigoso em ambiente de trabalho no Brasil, o sistema a ser usado é o GHS, inseri
ndo esta exigência na NR 26 (Sinalização de Segurança). Porque, até então, tínhamos o Decreto 2.657, que determinava que os empregadores deveriam classificar e informar sobre os perigos, só que não dizia qual era o sistema a ser usado. Então, em 2011, o MTE definiu que para o local de trabalho, todo e qualquer produto químico usado tem que ser classificado, rotulado e ter a FISPQ de acordo com o GHS. Isso passou a ser o norte para qualquer indústria que tenha trabalhadores e utilize produtos químicos.
Quais os pontos essenciais para implantação do Sistema? Que profissionais devem estar envolvidos neste processo?
As ações para implementação do GHS consistem na determinação do perigo por meio da classificação; fazer a FISPQ; o rótulo e capacitar os trabalhadores para entender essas informações. São esses os quatro grandes pilares para sua adoção. O sistema define critérios para classificar e comunicar os perigos dos produtos, apontando três classes de perigos que devem ser avaliadas: perigos físicos – um produto que pode pegar fogo, que pode explodir, sofrer reação e liberar calor, por exemplo; perigos à saúde humana, corrosão, irritação à pele, dano a um órgão específico. Esse dano pode acontecer durante uma exposição aguda, então temos o químico, classificado como tóxico agudo ou em uma exposição crônica, quando o produto vai causar uma toxidade depois de longo período de exposição. Isso porque há diferentes tipos de químicos, e alguns reque- rem anos de exposição para causar toxidade. Outros perigos à saúde são câncer, dano a formação/desenvolvimento do feto, sensibilização, etc. E temos a terceira e última classe, que são os perigos ao meio ambiente. Um produto químico pode, por exemplo, causar morte de peixes, danos para algas, plantas. Assim, para definir se um químico é perigoso e os tipos de perigo, são necessários conhecimentos múltiplos. Quem sabe sobre efeitos dos perigos físicos é, normalmente, alguém que estudou a área química – um químico, engenheiro químico. Falando sobre os da- nos à saúde humana, quem os conhece são profissionais da saúde. Em relação ao meio ambiente, quem tem esta informação é um profissional que conheça como o produto se transforma no meio ambiente – um biólogo, um engenheiro ambiental. Isso mostra o quão multidisciplinar é o assunto. Ele exige que vários profissionais, com diferentes conhecimentos, estejam envolvidos para conseguir definir se o produto é perigoso ou não. É assim que se inicia a implementação do GHS. Em seguida, vamos comunicar esses perigos por meio de frases e símbolos contidos na rotulagem e nas fichas de segurança. Também por meio desses perigos, definimos as medidas seguras de proteção e de precaução para que não aconteçam acidentes.
O prazo para as primeiras etapas previstas no GHS, referentes a substâncias, terminou em 2011. Nossas empresas já realizaram estas adequações?
Quem determinou o prazo para adequar as substâncias foi a ABNT, por meio da NBR 14725. Em fevereiro de 2011, todas as em- presas que comercializam ou manipulam substâncias puras deveriam já ter a classificação e os documentos de segurança adequados ao GHS. Percebemos que, hoje, a maioria dessas empresas se adequaram. Isso foi gradativo, não tivemos todas adequa- das desde o começo do prazo. Acho que a maior dificuldade era e continua sendo no quesito importação, porque, quando importamos, o produto já deveria vir do outro país adequado ao GHS. No entanto, isso pouco acontece, como também ainda temos pouca exigência e fiscalização. Então, hoje um produto químico entra no país sem que se verifique se a FISPQ e o rótulo estão adequados ao GHS adotado na legislação brasileira. Empresas brasileiras acabam comprando substâncias não adequadas, porque o país exportador ainda não se alinhou ao sistema. Neste caso, as adequações com- petem à empresa que importou o produto, pois ela aceitou receber dessa maneira. Isso tem sido um problema, já que o Brasil importa muitos químicos. Percebo que muitas substâncias importadas não estão totalmente adequadas. Principalmente quando vêm de países onde a exigência para exportação também não é tão alta, como Índia e China – dos quais o Brasil adquire muitas substâncias. Dificilmente vamos encontrar uma substância que venha da Europa e não tenha sua FISPQ e rótulos adequados, por exemplo. Entendo que, no quesito substâncias, nosso país já avançou bastante, apesar destes entraves. Entretanto, apesar de existirem muitos tipos de substâncias puras e indústrias que as comercializem, posso dizer que, representativamente, isso não passa de 20% do total de produtos químicos utilizados no país. Ou seja, os mais de 80% são misturas. Aí percebemos que, por mais que tenhamos dado um passo importantíssimo ao adequar as substâncias ao GHS, ainda ficou um gap. O grande volume de produtos hoje comercializados por todos os segmentos, tintas, matérias-primas para indústrias de medicamentos/cosméticos/alimentos, saneantes, adesivos, óleos lubrificantes, etc., são misturas – produtos formados por mais de um componente.
Em 1º de junho, entrou em vigor o GHS no que tange a misturas. Qual a importância desta data?
Esta data teve por base o prazo europeu para adequação das misturas. De acordo com a OMC (Organização Mundial do Comércio), considerando o faturamento que vem do comércio mundial de químicos, a Europa representa em torno de 30 e 40% deste mercado. Em seguida estão os EUA, com uma fatia entre 25 e 30%; a China entra com pouco mais de 10% do faturamento total; já o Brasil não chega a representar 2% do faturamento mundial de produtos químicos. Como a Europa propôs o prazo para alinhamento das misturas ao GHS em 1o de junho de 2015, muitos países acompanharam a determinação. Então, 1o de junho de 2015 acabou sendo um prazo norteador para o resto do mundo. E por que esta data é tão importante? Toda e qualquer indústria brasileira trabalha com misturas, seja manipulando ou comercializando. Elas têm que se adequar ao GHS a partir desse prazo. Anteriormente, quando falávamos somente sobre substâncias, atingíamos uma pequena parcela. Com este prazo, o GHS passa a ser implementado como um todo, ou seja, não há mais restrição de produto nenhum, exceto no item rotulagem de misturas. É um marco para o Brasil, consolidando a implementação global do GHS.
Por que foi dado maior prazo para conclusão da etapa de Rotulage
m?
Em maio deste ano, pouco antes de findar o prazo para adequação de misturas ao sistema, foi definido que a rotulagem teria mais seis meses para ser aplicada. Essa mudança ocorreu simplesmente por causa da dificuldade com a operacionalização das informações no rótulo. Porque, para rotular, é preciso ter impressoras específicas, e cada indústria pode comercializar centenas de tambores por dia. Isso não acontece com classificação e ficha de segurança, por exemplo; fazemos a FISPQ uma vez só e já ficam prontos para todos os envases daqueles produtos. O treinamento também, você capacita vários trabalhadores ao mesmo tempo. Então, podemos aplicar esses três itens sem grandes dificuldades operacionais. A rotulagem, não. Existem latas, principalmente no setor de tintas, que são litografadas – o próprio metal da lata vem com as informações da metalgráfica, não basta colar uma etiqueta. Então, isso dificultou o cumprimento do prazo. Também há uma questão cultural no Brasil, in- felizmente, de deixarmos as coisas para a última hora. Quando chegou 2015, as em- presas se depararam com essa dificuldade operacional e solicitaram mais seis meses para adequação da rotulagem. Mas isso não minimiza em nada a adoção do GHS.
Como o senhor avalia o conhecimento das empresas e profissionais brasileiros sobre o Sistema GHS? Quais os principais desafios neste campo?
Diria que ambos ainda desconhecem bastante o assunto. Eles estão aos poucos buscando essa capacitação, essa informação. Mas ainda é comum comentarem que nunca ouviram falar de GHS. Inclusive técnicos, engenheiros de segurança, profissionais de áreas como saúde, meio ambiente, e qualidade. Percebo que o assunto ainda é pouco disseminado e conhecido por aqueles que precisam aplicá-lo, uma vez que o sistema se tornou obrigatório quatro anos atrás. Os principais desafios estão em, justamente, os profissionais envolvidos conhecerem como se avalia e minimiza o risco químico. Essas ações são, em geral, realizadas por profissionais da área de segurança e saúde dentro da empresa. Só que, durante a formação deste profissional, não se fala muito sobre pro- dutos químicos. Os próprios engenheiros e técnicos de segurança comentam isto. Até mesmo profissionais da área química citam que nunca aprenderam a determinar se um produto é perigoso.
Mesmo na área química?
Sim. Um tópico importante e que causa dúvidas é o conceito do que é perigoso. Na avaliação do risco químico a primeira etapa é determinar se um produto é perigoso ou não. Por definição, perigo é a capacidade de causar um dano. Por exemplo, vamos avaliar se um item é inflamável ou não. A água nunca vai pegar fogo, então não tem este perigo. Já o álcool tem capacidade de pegar fogo, e isso se deve ao seu ponto de fulgor; ou seja, ele é perigoso. Depois que definimos o perigo, na avaliação do risco, vamos para a etapa da exposição. Quanto mais exposição, maior o risco. Quanto menor a exposição, menor o risco. Então, na avaliação do risco químico é necessário definir o perigo da substância e como o trabalhador se expõe a ela. Vou citar um produto corrosivo. Qual o perigo? É um produto corrosivo, com capacidade de causar queimadura na pele. O trabalhador corre risco? Depende. Se ele manipular esse corrosivo com uma luva de proteção adequada, com o avental de manga longa ou avental cirúrgico, em um ambiente adequado, o risco é baixo, totalmente minimizado. Então, qual é o maior desafio? Primeiro, que nossos profissionais entendam a questão do perigo e a diferença entre perigo e risco e a aplicação correta destes conceitos. Percebo que eles têm pouca capacitação no tema risco químico. Conversando com vários profissionais da área de Segurança do Trabalho, ouvi que, em sua formação, uma das partes mais difíceis é justamente a questão do risco químico. Avaliá-lo é complexo porque ele pode mudar conforme a substância, e atualmente existem milhares de dezenas de substâncias químicas. Este é um universo que os prevencionistas precisariam conhecer melhor.
O senhor realiza palestras por todo o país, levando conhecimentos sobre segurança química e GHS. Quais os impactos da não aplicação do sistema?
Há diferentes níveis de impacto. Qualquer empresa, tanto no mercado nacional quanto mundial, precisa atender esta nova legislação. Quem comercializa produtos químicos hoje, se não se adequa ao GHS, perde vendas. Indústria nenhuma quer perder vendas, e seus clientes, os usuários do produto estão cobrando adequações ao sistema. Um segundo impacto é que a indústria que não se adequar pode ser penalizada pela fiscalização do MTE. Outra consequência é a possibilidade de perda de certificações. Hoje, as indústrias buscam certificações como a ISO 14000, mais voltada ao meio ambiente, e OHSAS 18000, voltada à área de SST. Algumas certificadoras passaram a incorporar a exigência do GHS em suas auditorias. Quem não tem certificação não está no mercado. É também um impacto fortíssimo na questão da responsabilidade social e ambiental da empresa, algo que está nos valores de toda indústria séria. O não cumprimento do GHS significa o não cumprimento desse compromisso de disponibilizar informações importantes para a proteção do trabalhador e do meio ambiente.
Referências
http://www.protecao.com.br/edicoes/9/2015/Acjj