A Toxicologia é a ciência que estuda os efeitos nocivos decorrentes das interações das substâncias químicas com os organismos vivos, abrangendo a natureza e os mecanismos das lesões tóxicas e a avaliação quantitativa do espectro das alterações biológicas produzidas. A Toxicologia constitui o principal instrumento para subsidiar estudos de avaliação de risco químico à saúde e contribuir no estabelecimento de medidas preventivas e corretivas na utilização das substâncias químicas1.
Segundo o relatório da Comissão Lancet de Poluição e Saúde², mais de 140.000 novos produtos químicos foram sintetizados desde 1950. Destes materiais, os 5000 produzidos em maior volume tornaram-se amplamente dispersos no ambiente e são responsáveis pela exposição humana quase universal. Menos da metade desses produtos químicos de alto volume de produção foram submetidos a qualquer teste de toxicidade. A avaliação rigorosa antes do lançamento no mercado de novos produtos químicos tornou-se obrigatória apenas na última década, em alguns países de alta renda.
O resultado é que produtos químicos cujos efeitos sobre a saúde humana e o ambiente nunca foram avaliados, têm sido repetidamente responsáveis por episódios de doenças, mortes e degradação ambiental. Os exemplos históricos incluem o chumbo, o amianto, o diclorodifeniltricloroetano (DDT), as bifenilas policloradas (PCBs) e os clorofluorocarbonos. Novos produtos químicos sintéticos que entraram no mercado mundial nas últimas 2 ou 3 décadas e que, como seus predecessores, sofreram pouca avaliação prévia, ameaçam repetir essa história. Eles incluem neurotóxicos do desenvolvimento, disruptores endócrinos, herbicidas, inseticidas, resíduos farmacêuticos e nanomateriais.
A capacidade desses poluentes químicos emergentes de causar danos à saúde humana e ao ambiente está se tornando evidente. A preocupação crescente nos países desenvolvidos tem resultado no aumento da produção química nos países de baixa e média renda como o Brasil, onde as medidas de Saúde Pública e de Proteção Ambiental são geralmente precárias. O objetivo da Comissão Lancet de Poluição e Saúde é aumentar a consciência global acerca da poluição química, superar a negligência com as doenças a ela relacionadas e mobilizar os recursos e a vontade política necessários para enfrentar, efetivamente, os desafios existentes.
A aplicação de produtos químicos em praticamente todas as atividades levou a uma crescente exposição humana por intermédio do ar, da água, do solo e dos alimentos poluídos, constituindo, atualmente, séria ameaça à saúde humana, ao ambiente e à própria vida no planeta³. Este artigo tem por objetivo mostrar a importância da contribuição dos médicos, adequadamente capacitados em Toxicologia, para o enfrentamento e superação dessa realidade.
A publicação Guidelines on the Prevention of Toxic Exposures4, elaborada pela Organização Mundial de Saúde, no âmbito do Programa Internacional de Segurança Química, alerta que certos grupos da população estão mais vulneráveis aos produtos químicos. Crianças com menos de cinco anos de idade tendem a tocar e explorar os arredores, entrando em contato com produtos químicos usados ou armazenados de forma inadequada. Trabalhadores rurais e industriais usam, com frequência, grandes quantidades de produtos químicos sem a proteção necessária. As mulheres grávidas e seus embriões podem estar expostos em suas casas e demais ambientes de permanência. As pessoas idosas são, em virtude de mudanças fisiológicas, mais suscetíveis aos efeitos tóxicos dos produtos químicos.
O avanço dos estudos e pesquisas nos países desenvolvidos, sobre os efeitos nocivos dos produtos químicos na saúde humana e no ambiente, resultou em uma progressiva mobilização internacional que convergiu na criação da Abordagem Estratégica para a Gestão Internacional de Produtos Químicos (Strategic Approach to International Chemicals Management – SAICM), em 2006. Este acordo internacional visa aprimorar a gestão de produtos químicos em todos os países, para cumprir a meta de produção e utilização com o mínimo de impactos negativos sobre a saúde humana e o ambiente até 2020, estabelecida na Rio +10, em Joanesburgo, África do Sul, em 2002.
Os estudos e pesquisas realizados nos países desenvolvidos mostram que a exposição aos produtos químicos pode causar praticamente todas as doenças crônicas não transmissíveis conhecidas.
Em março de 2015, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), apoiado pelas Convenções de Basileia, Roterdã e Estocolmo, com base em dados referentes a 2012, apontou a poluição química como a principal causa de morte no planeta.5 A mortalidade resultante da poluição química, em todas as suas formas, atingiu cerca de 8,9 milhões de pessoas, sendo que 94% dessas mortes ocorreram em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como o Brasil, grande produtor químico e grande consumidor de agrotóxicos.
Na perspectiva da Epidemiologia, pode-se afirmar que a poluição química é responsável, também, por grande número incapacidades permanentes, incapacidades temporárias e doenças em diferentes fases de evolução na população brasileira. Isto significa que pacientes de todas as idades que procuram atendimento médico em todas as especialidades, devem ser indagados acerca de exposições prévias a produtos químicos, para terem um efetivo histórico pessoal.
Em setembro de 2015, foi realizada, em Genebra, a 4ª Conferência Internacional de Gestão Química – ICCM4, com intensa participação da Organização Mundial de Saúde que apresentou, com base na contribuição de 78 países, as Prioridades do Setor de Saúde para superar a ameaça química global e alcançar a meta 2020. Tais prioridades constam do anexo III do relatório da ICCM46 e estão descritas a seguir:
1- Aperfeiçoamento e padronização de métodos para determinar os impactos dos produtos químicos na saúde, para definir prioridades de ação e avaliar a efetividade das políticas e progresso da Abordagem Estratégica Internacional para a Gestão de Produtos Químicos.
2- Formulação de estratégias para a prevenção de danos à saúde causados por substâncias químicas, ao longo da vida, incluindo estratégias direcionadas para a saúde das crianças e dos trabalhadores.
3- As estratégias precisam incluir o reforço da legislação, políticas e sistemas de informação de saúde, treinamento, educação e capacitação em comunicação de riscos.
4- Construção de capacidades para lidar com intoxicações, acidentes e emergências químicas.
5- Criação e fortalecimento dos Centros de Controle de Intoxicações.
6- Vigilância e mecanismos de resposta a acidentes e emergências químicas.
7- Promoção de alternativas aos produtos químicos altamente tóxicos e persistentes, tendo em conta os respectivos ciclos de vida. Isto requer a interação do setor da saúde com outros setores que desenvolvem novas substâncias, novas tecnologias e novos produtos.
8- Ampliação do conhecimento científico sobre os disruptores endócrinos, nanomateriais e exposições combinadas a vários produtos químicos.
9- Melhoria nas metodologias de avaliação de riscos à saúde e na tomada de decisão para gestão efetiva.
10- Elaboração de métodos globalmente harmonizados para avaliar riscos químicos, aumentar a transparência, permitir o compartilhamento dos recursos e reduzir a duplicação de esforços.
11- Desenvolvimento de metodologias de avaliação da exposição a produtos químicos aplicáveis em diferentes padrões de uso e climas.
Parte significativa das doenças agudas e crônicas que levam os brasileiros a procurar atendimento médico deve resultar da exposição a produtos químicos.
Tais prioridades foram discutidas em 2 Seminários de Educação em Segurança Química: o primeiro realizado na Sede do CREMERJ, a Casa do Médico, no Dia Mundial da Saúde, 07/04/2017 e o segundo na Diretoria de Saúde da Aeronáutica, no dia 29/11/2017. Ambos eventos resultaram em propostas relevantes pelos participantes que evidenciaram o papel protagonista que deve ser desempenhado pelos médicos, em praticamente todas as especialidades, no desenvolvimento de ações nos diversos campos da Toxicologia: Clínica, Alimentar, Emergências Toxicológicas, Ocupacional, Ambiental, Social e Forense.
Reforçando a importância dessa iniciativa, deve ser mencionada a entrevista do Toxicologista Anthony Wong, Chefe do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clinicas da Universidade de São Paulo, publicada na revista Proteção de dezembro de 2017, onde enfatiza a falta de capacitação dos médicos brasileiros em Toxicologia. Acrescenta o especialista que, na Europa e nos Estados Unidos, a formação médica orienta que o profissional coloque a hipótese de intoxicação frente aos pacientes que examina7.
Os médicos devem estar capacitados em Toxicologia para uma atuação efetiva nas emergências químicas, no diagnóstico e tratamento das intoxicações crônicas, no diagnóstico precoce e pronta intervenção nas etapas iniciais das intoxicações e, o mais importante, atuação na prevenção, por meio da interação com profissionais de outras áreas, na estruturação de medidas que eliminem ou reduzam as exposições aos produtos químicos presentes no ar, na água, nos alimentos e no solo, em todos os ambientes de permanência das pessoas.
Em conclusão, pode-se afirmar que os estudos e pesquisas realizados nos países desenvolvidos mostram que a exposição aos produtos químicos pode causar praticamente todas as doenças conhecidas. Em consequência de falta de informação, regulamentação, treinamento e fiscalização na utilização de produtos químicos, que caracterizam as condições gerais de vida no país, é provável que parte significativa das doenças agudas e crônicas que levam os brasileiros a procurar atendimento médico resulte da exposição a produtos químicos presentes no ar, na água, nos alimentos e no solo.
O cumprimento da meta 2020 pelo Brasil demandará esforços sinérgicos dos órgãos governamentais, universidades, empresas, organizações não governamentais e outros segmentos da sociedade organizada, abrangendo a divulgação de informações de instituições de referência, a educação e o treinamento em Segurança Química em todos os níveis educacionais.
Para avançar na prevenção e no controle da poluição química, a Comissão Lancet de Poluição e Saúde2 apresenta seis recomendações. A terceira recomendação preconiza “Estabelecer sistemas para monitorar a poluição e seus efeitos sobre a saúde” e seu cumprimento exige dos médicos competência nos diversos campos da Toxicologia.
Este cenário cria uma excelente oportunidade para os médicos brasileiros confirmarem, junto à população, o lema “O Médico Vale Muito”, por meio de uma atuação efetiva nas emergências químicas, no diagnóstico e tratamento das intoxicações crônicas, no diagnóstico precoce e pronta intervenção nas etapas iniciais das intoxicações e, o mais importante, atuação na prevenção, por meio da interação com profissionais de outras áreas na estruturação de medidas que eliminem ou reduzam as exposições aos produtos químicos presentes no ar, na água, nos alimentos e no solo, em todos os ambientes de permanência das pessoas.
Bibliografia:
1- CASARETT ; DOUL’S Toxicology: The Basic Science of Poisons. Curtis D. Klaassen. 7.ed., 2008, 1293 p.
2- THE LANCET. The Lancet Comission on Pollution and Health. Disponível em: http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)32345-0/fulltext. Acesso em 06 ago. 2017.
3- CHEMSEC. Why Care About Hazardous Chemicals? Disponível em: http://chemsec.org/about-us/why-care-about-hazardous-chemicals/. Acesso em 30 ago. 2017.
4- WHO. International Programme on Chemical Safety. Guidelines on the prevention of toxic exposures. Disponível em: http://www.who.int/ipcs/poisons/prevention_guidelines/en/. Acesso em 30 ago 2017
5- UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Pollution is the Largest Cause of Death in the World. Disponível em: UNEP_SDG_FactSheet_March13_2015. Acesso em 06 ago. 2017.
6- SAICM. Report of The International Conference on Chemicals Management on the work of its fourth session. Disponível em http://www.saicm.org/Portals/12/documents/meetings/ICCM4/doc/K1606013_e.pdf Acesso em 19 abr 2018.
7- BOSSLE, Daniela. Atuação Pioneira. Revista Proteção, Rio Grande do Sul, v. 312, p. 10-14, Dez 2017. Ano XXXI.
Newton Richa – Médico do Trabalho
Representante da UFRJ na Comissão Nacional de Segurança Química (CONASQ/MMA).